O dia começava cedo, mais uma vez. Dormir não era mais minha prática favorita desde que me contaram que dormi 7 dias diretão. Pela janela do lado esquerdo do quarto dava pra ver que estava ensolarado. Sequer quis pedir para ligar a TV dessa vez. _Acho que a gente vai embora hoje, falaram que o Dr. pode passar aqui assinar a sua alta. Eu acho que a minha mãe sabia que a gente iria embora, mas não quis me dar tantas esperanças já que vínhamos vivendo menos que um dia de cada vez, era uma hora de cada vez.
Escolhemos uma camiseta branca com desenhos de flores cor-de-rosa, que eu havia ganhado da Raíssa de aniversário, e que harmonizava legal com a calça de agasalho rosa também. Nem era minha cor favorita, mas foi a escolhida para a ocasião uma vez que eu não tinha muitas opções além de pijamas. _Tênis, tem que colocar tênis porque se você tiver que andar, dá certo. Calçamos os tênis e eu estava prontinha caso o plano de fuga fosse concretizado. :D.
_E se a gente fosse até a UTI dar um tchau para as enfermeiras? Mas que ideia genial para um sábado de manhã, né! Inicialmente foi ideia da minha mãe mas eu concordei com entusiasmo antes mesmo que ela terminasse de dizer. Qualquer atividade do lado de fora da cama da Nasa era sensacional. _Tchau, pai, a gente já volta.
O leito 23 {a.k.a suíte presidencial} da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital 9 de Julho havia sido meu endereço fixo por 9 dias, seria justo me despedir de lá e dos melhores amigos que uma pessoa em coma pode ter: enfermeiros carinhosos. Chegamos, na recepção: _A menina Ana Flavia está aqui com a mãe, parece que vão pra casa hoje e querem dizer tchau pra equipe, é claro que podem entrar. Pensa numa recepção energizante e alegre – para um ambiente tão bucólico e protocolado! A alegria não era só minha.
_Ana, tá tudo bem?
_Mãe, eu acho que …
E assim uma cadeira magicamente apareceu atrás de mim e ali mesmo despenquei, sem nitidez na visão, sem cor nas bochechas e nos lábios. Eu estava em pé há mais de 10 minutos. Que ousada! Faltou energia. _Se for pra ter um mal-estar, que seja dentro da uma UTI – Pensamos. _Não foi nada! – Remediamos. _Ah, essa menina é forte! – Justificamos. _Ninguém contará pro Dr.! – Mentimos.
Se eu estava preocupada? Acreditei em tudo o que dissemos e nunca estive mais serena e ansiosa para botar os pés na calçada de uma vez por todas. Se você soubesse o tanto de promessas de passeios mundo a fora que me fizeram … o tal do ME-LHOR X-Picanha da Avenida Paulista ainda estou aguardando, só para lembrar.
_Ana, sente na poltrona, não volte pra cama não, o Dr. deve vir logo. Ajustei os cadarços pra não tropeçar, aquele tantinho de cabelo que sobrou penteamos e ajeitamos, e o sorriso também já estava pronto esperando o Dr. japonês grisalho sisudo dar as caras. Nem demorou.
Com a sua expressão única, entrou. _ Bom dia, menina. _Foi aprontar em outro andar e não passou bem, não é mesmo? _Isso foi sério, quem deu autorização para você sair do seu quarto? _Trocar de andar?
_Eu só queria…
[silêncio do pânico.] Ele não sabia o quanto eu queria ir pra casa? Aquilo não havia sido nada, poxa. Todos repetiam há dias que seu estava ótima! Acreditei. Contem a ele também, por favor, que estou “ótima”.
_Vou deixar você ir passar a Páscoa em casa, sim.
_ 😀
_Mas vai se comportar. _Mãe, não deixe ela levantar sozinha, ok? _Aqui estão as receitas dos medicamentos. _Gardenal.
_ O.O Ainda?
_Mais um pouco, sim.
[Por ‘um pouco’ entenda 20 meses].
_ 1 mês sem sair de casa, ok?
[Afe, como vou dizer isso pras amigas?]
_ Piscina, por 12 meses NÃO.
[Mas gente, eu não tava “ótima”?]
Havia tanto que não fora dito. Aquele caminho de volta pra casa era na verdade o início de um novo caminho na vida. Restrições. Limitações. Privações. Descobertas a cada nova dor. Déficit na audição. Deslocamento irreversível de Articulação TemporoMandibular. Cabelo?. Tudo isso aceitamos sem pestanejar. Atrofia cerebral. CONTESTO! Fagulhas do metal da serra dentro da cabeça. BIZARRO.
Cheguei em casa. Achamos melhor deixar a porta aberta. Nunca vi tanto entre e sai antes. Todo mundo queria me visitar, que legal! Pessoas entravam chorando, _Por que? – eu pensava. Mais ovos de Páscoa juntos só vi no supermercado. Convoquei as crianças da família e bairro para passarem lá uma por dia para me ajudarem a comer todos. _Hora da vitamina, Ana, beterraba com cenoura, você tá muito magrinha, menina. – Queria chocolate.
_Melhor evitar.
_Melhor evitar.
_Melhor evitar.
_Melhor evitar.
_Melhor evitar.
Experimente dizer repetidos ‘_Melhor evitar’ para alguém de 18 anos. 19. 20. 21. 22 …
Multiplique esta afirmação por 10 anos. Acho que até eu correr meus primeiros 10 km, em 2016, essa foi a frase que mais ouvi e que por muitas vezes me travou para fazer algo novo ou algo que ‘todo mundo’ fazia, menos eu. Mas eu não sou todo mundo, né. Experimentei muitas sensações tarde na vida, por ser Melhor Evitar (considere Banho Gelado também).
Nunca aceitei a bolha. Minha mãe bem sabe. Ela diz que eu não era teimosa antes. Não me lembro muito bem. Mas hoje não evito mais nadinha, menos ainda devolver pro universo a gratidão à oportunidade abençoada que é viver acordada em pé sem faltar energia. Ah, rir em pé sem cair também foi uma conquista e tanto pra quem é adepta de boas gargalhadas :D.
Tudo isso dia 26 de março de 2005 ainda. Esse dia nunca mais terminou desde que saí pela porta do H9J (pelo acesso da Rua Peixoto Gomide) disposta a não desistir dos sonhos de alguém de 18 anos e a contrariar quem fosse de direito de que eu poderia ser capaz sozinha, sim senhor!
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