2021

Foram mais de 6 mil e quatrocentas horas se esquivando de um vírus digno de uma pandemia até 2020 terminar antes do extermínio do tal vírus.

Foram mais de 6 mil e tralalá horas olhando ao redor pro mundo pedindo socorro e também pra dentro.

Se você chegou aqui, é um ser humano mais evoluído. Feliz 2021 pra você. Continue olhando pra dentro e ao redor e se preocupando com um mundo melhor pra você e para os seus.

;*

26 de março de 2005

O dia começava cedo, mais uma vez. Dormir não era mais minha prática favorita desde que me contaram que dormi 7 dias diretão. Pela janela do lado esquerdo do quarto dava pra ver que estava ensolarado. Sequer quis pedir para ligar a TV dessa vez. _Acho que a gente vai embora hoje, falaram que o Dr. pode passar aqui assinar a sua alta. Eu acho que a minha mãe sabia que a gente iria embora, mas não quis me dar tantas esperanças já que vínhamos vivendo menos que um dia de cada vez, era uma hora de cada vez.

Escolhemos uma camiseta branca com desenhos de flores cor-de-rosa, que eu havia ganhado da Raíssa de aniversário, e que harmonizava legal com a calça de agasalho rosa também. Nem era minha cor favorita, mas foi a escolhida para a ocasião uma vez que eu não tinha muitas opções além de pijamas. _Tênis, tem que colocar tênis porque se você tiver que andar, dá certo. Calçamos os tênis e eu estava prontinha caso o plano de fuga fosse concretizado. :D.

_E se a gente fosse até a UTI dar um tchau para as enfermeiras? Mas que ideia genial para um sábado de manhã, né! Inicialmente foi ideia da minha mãe mas eu concordei com entusiasmo antes mesmo que ela terminasse de dizer. Qualquer atividade do lado de fora da cama da Nasa era sensacional. _Tchau, pai, a gente já volta.

O leito 23 {a.k.a suíte presidencial} da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital 9 de Julho havia sido meu endereço fixo por 9 dias, seria justo me despedir de lá e dos melhores amigos que uma pessoa em coma pode ter: enfermeiros carinhosos. Chegamos, na recepção: _A menina Ana Flavia está aqui com a mãe, parece que vão pra casa hoje e querem dizer tchau pra equipe, é claro que podem entrar. Pensa numa recepção energizante e alegre – para um ambiente tão bucólico e protocolado! A alegria não era só minha.

_Ana, tá tudo bem?

_Mãe, eu acho que …

E assim uma cadeira magicamente apareceu atrás de mim e ali mesmo despenquei, sem nitidez na visão, sem cor nas bochechas e nos lábios. Eu estava em pé há mais de 10 minutos. Que ousada! Faltou energia. _Se for pra ter um mal-estar, que seja dentro da uma UTI – Pensamos. _Não foi nada! – Remediamos. _Ah, essa menina é forte! – Justificamos. _Ninguém contará pro Dr.! – Mentimos.

Se eu estava preocupada? Acreditei em tudo o que dissemos e nunca estive mais serena e ansiosa para botar os pés na calçada de uma vez por todas. Se você soubesse o tanto de promessas de passeios mundo a fora que me fizeram … o tal do ME-LHOR X-Picanha da Avenida Paulista ainda estou aguardando, só para lembrar.

_Ana, sente na poltrona, não volte pra cama não, o Dr. deve vir logo. Ajustei os cadarços pra não tropeçar, aquele tantinho de cabelo que sobrou penteamos e ajeitamos, e o sorriso também já estava pronto esperando o Dr. japonês grisalho sisudo dar as caras. Nem demorou.

Com a sua expressão única, entrou. _ Bom dia, menina. _Foi aprontar em outro andar e não passou bem, não é mesmo? _Isso foi sério, quem deu autorização para você sair do seu quarto? _Trocar de andar?

_Eu só queria…

[silêncio do pânico.] Ele não sabia o quanto eu queria ir pra casa? Aquilo não havia sido nada, poxa. Todos repetiam há dias que seu estava ótima! Acreditei. Contem a ele também, por favor, que estou “ótima”.

_Vou deixar você ir passar a Páscoa em casa, sim.

_ 😀

_Mas vai se comportar. _Mãe, não deixe ela levantar sozinha, ok? _Aqui estão as receitas dos medicamentos. _Gardenal.

_ O.O Ainda?

_Mais um pouco, sim.

[Por ‘um pouco’ entenda 20 meses].

_ 1 mês sem sair de casa, ok?

[Afe, como vou dizer isso pras amigas?]

_ Piscina, por 12 meses NÃO.

[Mas gente, eu não tava “ótima”?]

Havia tanto que não fora dito. Aquele caminho de volta pra casa era na verdade o início de um novo caminho na vida. Restrições. Limitações. Privações. Descobertas a cada nova dor. Déficit na audição. Deslocamento irreversível de Articulação TemporoMandibular. Cabelo?. Tudo isso aceitamos sem pestanejar. Atrofia cerebral. CONTESTO! Fagulhas do metal da serra dentro da cabeça. BIZARRO.

Cheguei em casa. Achamos melhor deixar a porta aberta. Nunca vi tanto entre e sai antes. Todo mundo queria me visitar, que legal! Pessoas entravam chorando, _Por que? – eu pensava. Mais ovos de Páscoa juntos só vi no supermercado. Convoquei as crianças da família e bairro para passarem lá uma por dia para me ajudarem a comer todos. _Hora da vitamina, Ana, beterraba com cenoura, você tá muito magrinha, menina. – Queria chocolate.

_Melhor evitar.

_Melhor evitar.

_Melhor evitar.

_Melhor evitar.

_Melhor evitar.

Experimente dizer repetidos ‘_Melhor evitar’ para alguém de 18 anos. 19. 20. 21. 22 …

Multiplique esta afirmação por 10 anos. Acho que até eu correr meus primeiros 10 km, em 2016, essa foi a frase que mais ouvi e que por muitas vezes me travou para fazer algo novo ou algo que ‘todo mundo’ fazia, menos eu. Mas eu não sou todo mundo, né. Experimentei muitas sensações tarde na vida, por ser Melhor Evitar (considere Banho Gelado também).

Nunca aceitei a bolha. Minha mãe bem sabe. Ela diz que eu não era teimosa antes. Não me lembro muito bem. Mas hoje não evito mais nadinha, menos ainda devolver pro universo a gratidão à oportunidade abençoada que é viver acordada em pé sem faltar energia. Ah, rir em pé sem cair também foi uma conquista e tanto pra quem é adepta de boas gargalhadas :D.

Tudo isso dia 26 de março de 2005 ainda. Esse dia nunca mais terminou desde que saí pela porta do H9J (pelo acesso da Rua Peixoto Gomide) disposta a não desistir dos sonhos de alguém de 18 anos e a contrariar quem fosse de direito de que eu poderia ser capaz sozinha, sim senhor!

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O sono que não desejamos

É um sono que começa antes do bocejo inicial. Você não se prepara para dormir, não apaga a luz, sequer veste o seu pijama. Se não está de dentes escovados, esqueça; alguém terá de fazê-lo por você. Se, quem sabe, fosse possível um planejamento… faria uma lista de pendências a resolver, contas a vencer, obrigações a cumprir, compromissos a desmarcar antes de dormir. Mas como disse, é um sono que começa antes do cair da noite.

Antes mesmo de fechar os olhos e deitar-se confortavelmente sua mente já está dormente, não há raciocínio lógico, nem ilógico. Para mim foi um dormir a perder de vista. Se, oficialmente foram 7 dias nas profundezas das camadas mais distantes do sono, para mim começou antes, adormeci por 15 quando ainda me diziam acordada. Mas se pensam que é um cair no buraco da Alice, engano. Não é uma realidade oposta, é apenas viver paralelamente a ela, lado a lado. Não há raciocínio mas há consciência. Os sentidos estão ali. Naturalmente a audição é o mais apurado. Tudo é ouvido, tudo é percebido, nada é questionado. Não há pânico, não há aprisionamento, mas há percepção. A ausência de raciocínio livra do sofrimento.

Não tem luz no fim do túnel, não tem nem túnel. Não tem tédio também. Chamo de sono porque sonhei. Sonhava com a realidade que me permeava. Sabia das coisas. Sabia sem saber. Não há raciocínio mas há consciência. Eu estava internada em um hospital, minha mãe não podia me encontrar mas tínhamos um código para eu saber que ela estava lá, e mesmo que não fisicamente eu sentia a sua presença. Assim foi no sonho. E na realidade também.

Eu estava doente e precisava de oxigênio especial, para tanto estive dentro de um cubo inflável – vermelho – repleto desse “ar”. Meu transporte era algo difícil, certa vez me colocaram no elevador que partiu sozinho antes da hora, fui parar no subsolo. Para sair dali: guindaste. Assim foi no sonho, uma fantasia a respeito dos balões de oxigênio da realidade.

Do cubo fui parar dentro de uma bola. Era espaçosa. Até ao circo me levaram a passeio, mas na dúvida as amigas chamaram o farmacêutico vizinho para examinar se estava tudo bem lá dentro comigo. Estava. Teve uma vez em que o “ar especial” começou a acabar e fui ficando sufocada, com uma tesoura cortaram minha bola e voltei a respirar tranquilamente. Tudo sonho. Tudo reflexo da realidade. Percepção traduzida.

Por estar doente e estudar em outra cidade, fiquei hospedada na casa da Sara e a mãe dela pacientemente cuidava de mim. Me impressionava a delicadeza dos traços e a beleza física dela, a atenção e dedicação comigo também, embora nunca tivesse visto a mãe da Sara antes e fora desse sonho. Após acordar a encontrei por acaso, a reconheci, pois era idêntica ao sonho. Agradeci.

Diariamente meus estímulos eram testados – e realmente confirmado pelos enfermeiros mais tarde. Com uma lanterninha mirada em meus olhos, um por vez, perguntavam-me se eu os ouvia e pediam qualquer tipo de resposta, eu não respondia. Eu me lembro. Duas ou três vezes, talvez sete, me ficaram na memória. Aí, nesses rápidos despertares na tentativa de alcançar o lado de fora do sono havia pânico. Frações de um segundo. Quem parecia que me ajudaria sumia imediatamente e eu mergulhava novamente no sono. Quando de fato acordei acreditava que alguém dividia a cama comigo e era para cuidar desse outro paciente que os enfermeiros seguiam após a tentativa em vão de me ajudarem. Eu sentia essa presença. Mas materialmente nunca houve outro paciente. Não era sonho. Não era realidade. Não sei o que era. Assim é estar em coma.

Abrir os olhos racionalmente depois de tanto tempo é um misto de emoções boas e ruins. Saber que o planeta Terra continuou a girar enquanto você esteve dormindo é um misto de emoções. Apesar da rotação ininterrupta, tudo aquilo que você deixou para depois não aconteceu… porque você esteve dormindo. Além de não realizar algumas, também não presenciou outras. Dormir é uma perda de tempo.

*P.s.: Você que vela o sono de quem um dia acordará, conte-lhe coisas boas. De quebra, serão sonhos bons, ao menos. 😉

4 de março

Dia 4 de março de 2016.

Dia 4 de março de 2005.

Duas sextas-feiras em onze anos.

Na década passada o dia começava muito cedo, às 5h20 tinha que estar em pé. Hoje o dia começou ainda mais cedo, às 5h02. Aos dezoito anos recém declarados minhas obrigações exigiam ir para a aula do cursinho pré-vestibular, na cidade vizinha, com a van do Maradona quando encontraria com a Sarah, minha coleguinha há 4 dias. Lá fui, embalada pela rotina e com uma bagagem extra de fome, devido ao ferimento no lábio inferior que me impedia de comer devidamente há alguns dias.

Na sexta de hoje, sem fome e sem obrigações. Pular da cama tão cedo é um hábito que cultivo em prol da saúde. Os exercícios físicos matinais me deixam mais feliz (ainda) diariamente.

Hoje, nublado, 23ºC com pancadas de chuva. Em 2005 ensolarado, perto dos 40ºC, sensação térmica de forno pré-aquecido a 180.

O que é comum aos dois dias é a certeza de que não sabemos como o dia terminará, nem onde, sequer se estaremos nele.

A reposição da aula teórica de mecânica para autos na tarde quente daquela sexta era, no mínimo, muito chata, mas disciplinada que sou compareci, compreendi e me senti pronta para finalmente fazer o teste, agendado para a próxima quarta-feira sob a ameaça de pagar R$30 caso faltasse. Obviamente eu estaria lá.

Na volta para a casa, sob o aterrorizante sol das 16h negociei um sorvete de chocolate em troca de acompanhar minha mãe em uma loja de plantas. Tamanho calor derretia o sorvete que gotejava na minha camiseta verde.

Finalmente em casa. O que acontecera nas horas, dias e semanas seguintes eu apenas soube por meio de relatos.

Aquele 4 de março ameaçou por fim em uma centena de sonhos.

Este 4 de março – hoje – vive intensa, constante e irreversivelmente feliz em função do rápido socorro daquele outro 4 de março.

Em 2005 não compareci à prova da autoescola, não assisti ao último capítulo de Senhora do Destino, não voltei mais para aquele cursinho pré-vestibular, não fui à quermesse de São José, não vi o rosto do padre que me concedeu a extrema unção, não escolhi meu ovo de Páscoa, não entrei em piscinas, não vesti mais a camiseta verde, não bebi drinques com os amigos, não penteei os cabelos. Mas se quer saber o mais importante, em 2005 não reclamei.

Como este 4 de março aqui ainda não acabou, faço aqui meu juramento: Se o de hoje tiver um final feliz, prometo não reclamar. 😉

4-3

Ela, Vóveia.

Lápis coloridos, giz de cera, apontador, papéis, muitos papéis, tinha tesourinha também e uns tubos de cola entupidos, sempre. A mesa era a do rancho, depois do almoço, diariamente. Ela era a Ester, ajudante da minha mãe, mas eu gostava mesmo era quando ela brincava comigo na lousinha. Entre uma letra e outra me alfabetizou antes da turminha do pré-primário, aos 5 de idade. Mas também foi dela o meu primeiro choque de identidade. Era só uma florzinha de papel, do tamanho da palma da minha mão, as pétalas estavam rabiscadas de amarelo e o miolo laranjado. Eu queria presentear uma pessoa muito especial, então usei toda a minha habilidade e escrevi o seu nome no centro: VÓVEIA. Com acento agudo e tudo, eu era esperta. Ao notar, Ester não queria permitir aquilo. “Você não pode chamar ela assim”. Na minha pobre cabecinha a indignação era gigantesca. Como não??? “O nome dela é Cecília, você pode escrever Vó Cecília, mas nunca chamar ela de velha”. Mas não estava chamando ninguém de velha, não. Vóveia era um nome, da vó, mãe do vô Nêne, mulher do Vôveio, que morava com a Vó Dalva. Confusão desfeita, o presente foi entregue, com todo o meu carinho mirim.

Tamanha doçura num cristalizado par de olhos azuis vinha da bisavó. Eu era mesmo muito jovem para compreender tal hierarquia que ela resolveu com simplicidade: para os pequenos bisa Cecília e biso Hermínio seriam Vóveia e Vôveio. Assim, numa palavra só, numa entonação única que ao sair da boca dos bisnetos soava carinhosamente como um título exclusivamente deles. Morriam de orgulho, aposto.

Vôveio deixou-nos cedo demais, para mim. Logo após um delicioso almoço comigo em 1989. A doçura em forma de gente o representou muitíssimo bem nos próximos anos, Vóveia era sempre a defensora das crianças, contava histórias de Saci e coisas que havia ouvido de seu pai que viera da Itália. Eu nunca sabia a idade dela, parecia congelada no tempo, mas algo eu sabia bem e achava “maior barato” contar que minha avó tinha nascido em 1917. A gente já tinha crescido um pouquinho e era muito legal carregar os colchões e dormir na sala, mas eu não conseguia dizer não quando ela me convidava pra dormir na cama dela, eu sempre ia. Mas eu também achava legal desamarrar o avental da vó e sair correndo, antes mesmo que ele caísse do corpo dela. Ela nunca reclamou, pode ser que gostasse também. Chegou uma época em que ela deu pra dizer que logo morreria, que absurdo! Tratou de confeccionar enxoval pras bisnetas, em sua agulhinha fina de crochê. Mariana nem tinha nascido ainda e já tinha sua colcha de cama de casal feita pela bisa-amor. Até que ela desistiu de avisar que morreria, viu que a saúde era de ferro e Deus a queria perto de nós mesmo. Sorte a nossa.

Crescemos e ela foi ficando cada vez menorzinha perto de mim que parecia uma vareta, cada dia mais comprida. Uma hora chegou o ano de 2005, triste ano de 2005. Estava tudo bem com todos, se não fosse um quase fatal (in)(a)cidente que ameaçou levar minha vida para outro plano. A complexidade era tanta que já estava sendo aceito pela maioria que não haveria outros aniversários para mim, e ela, a bisa, a Vóveia, a personificação da doçura, pediu em sua tão fortalecida fé que trocássemos de lugar. Ela acreditava que já tinha vivido tudo o que merecia e eu ainda não. Repetia, clamava. 5 meses mais tarde um câncer repentino atacou-a e ela foi. Eu fiquei. Há 10 anos, em agosto.

Ah, se ainda houver tempo de incluir, dos onze bisnetos a herança dos olhos claros veio só para mim. Uma honra sem limites. Obrigada por ter existido. 😉 ❤

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